das questões linguísticas

Já usei quase todos os meus “sins” da cartela de respostas prontas — os “nãos” ainda com quase todas as folhinhas preservadas, embora um pouco amareladas pelo tempo. E é assim, aos poucos mais respostas prontas vão sendo destacadas sem nenhum pudor ou pena. [A gente achou que não ia se acostumar com a burocratização dos sentimentos, mas, veja você, outro dia fui inquirida sobre eles, e como não estava munida do meu livro-de-respostas-prontas, em plena terça à noite, quase deixei escapulir uma declaração de amor. Mas tá, não que você não mereça, pelo contrário. É que algumas palavras de uso coletivo às vezes me soam tão proletárias, tão destemperadas e tão gastas como a antiga nota de um real que tenho até medo que um dia o VOLP dê uma de Banco Central e resolva tirar essas palavras de circulação e, imagine: como dizer o que é recíproco e que já é sabido porque é sentido?]  

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das escolhas lexicais

suas palavras me atravessaram me enlouqueceram me deixaram dias sem dormir. palavras abusadas, nervosas, sedutoras, entravam e saíam pelos olhos, ouvidos, poros e por todos os sentidos. palavras quentes, experientes, que provocaram arrepios em toda a extensão da derme, intercalando espasmos. sussurros. claroescuroclaro, gemidos em sampler corpos sinuosos e vejo suas palavras que pairam em light painting.

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entre as nuvens

“Bom dia molhado”, desejou ao espelho antes de sair de casa, olhando os pingos d’água que desenhavam a janela. Hoje é um daqueles dias em que o dia acordou nublado, mas fazia calor. Calor o suficiente pra não levar casaco. Nublado o bastante pra não esquecer de novo o guarda-chuva e ser pega de surpresa na volta pra casa no final do dia. Dia quente e úmido. Dia de não querer voltar pra casa, de passar em frente a sua casa e sentir vontade de descer do ônibus e fazer surpresa, fingir que estava passando por ali, com a plena consciência de que você não acreditaria, mas deixaria entrar, porque a vontade é bem maior que. E a saudade bate principalmente nesses dias nublados, que combinam com aquele café que só eu sei e só você. Café da manhã, de amanhã, dos dias seguintes e eu acordar no meio da noite pra ter certeza de que é a sua respiração que embala meu sono e é por isso que essa insônia ocupa o seu lugar na cama. E é por isso que eu queria descer do ônibus, “só dessa vez” (todas as vezes, o mesmo pensamento), só pra ver se você está bem, se está dormindo bem, se não toma mais aqueles remédios, ou se ainda dorme com a TV ligada. Eu posso dormir aí? Pergunta que fica no ar, só no meu pensamento, enquanto eu vejo de relance o seu portão, torcendo pra que ele responda: entra, que bom que você chegou.
Depois da curva, é aquela cena clássica: dor no peito, ela fecha os olhos, o dedo tenta ser mais rápido do que a lágrima que escorre, a maquiagem borrada, o choro engasgado e todo aquele turbilhão de sentimentos e porquês que ela até passou do ponto, voltou na contramão, desviando do engarrafamento de guarda-chuvas e tentando não molhar os pés. A Rua Jardim Botânico sempre enche quando chove muito. E eu sempre acho que foi porque Alice chorou demais.
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[agora (nada) tudo] depois que a vida começa

a partir de agora nada será como antes tudo faz sentido depois que a vida começa então me esquece então me escuta então faz tanto tempo que a gente vive aqui faz tanto tempo desde a última vez que eu fui embora [eu sempre quis dizer “vá embora”, mas com você eu fui feliz primeiro e justo com você eu fui embora cedo pra ser feliz depois (de novo, mas de outro jeito, não do nosso jeito), agora sem você e sem medo] que eu já nem me lembro mais do som que tocava no seu rádio e as minhas plantas morreram, você fez questão de deixá-las ali acompanhando os dias que contariam o fim dos seus dias, e então elas se cansaram de esperar por amor, por você, por mim e secaram. Até a cor das paredes desbotou de tanta ausência de vida e tanto excesso de amor lá fora. Nada faz sentido aqui agora que a vida termina e tudo será como depois a partir de então
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móbile

fecho os olhos e vejo sentimentos pendurados, aquele coração de cabeça pra baixo balançando de um lado para o outro, hipnotizado, ele é o pêndulo do seu relógio.
 
lembranças entrecortadas daquela noite se misturam aos sonhos: imagens em frames, frases ecoando no ouvido, um zumbido, o que eu disse mas queria dizer de novo, entra a cena embaçada do que você disse e que eu nunca vou esquecer na realidade do sonho, no sonho e pra sempre até que dure a vontade. Até que seja melhor, até que seja de novo, e num futuro próximo só haverá mais memórias tórridas e esboços de encontros com diálogos em linhas cruzadas. [ouço no fundo ruídos gemidos solos de guitarra no escuro] 
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Nomes dos dias da semana em português antigo

WikiPedro

Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira… Nem sempre os dias da semana em português foram tão previsíveis e matemáticos. Antes de serem renomeados segundo a ordem (contada a partir de domingo), por recomendação da Igreja Católica, no século XV, os nomes dos dias da semana em português eram cognatos das demais línguas latinas da Europa. Faziam referência às divindades pagãs (greco-romanas) e aos corpos celestes, como as línguas germânicas (inglês, alemão, holandês, sueco, dinamarquês…) fazem às divindades germano-escandinavas. Em comum, todas dedicam a segunda-feira à lua. Já era assim em latim.

Pois assim era também em português – ou, como se considera agora, o “galaico-português”, o idioma comum a Galícia e Portugal que depois se dividiu nos atuais português e galego. A semana em nossa língua era composta pelos dias domingo, lues, martes, mércores, joves, vernes e sábado.

Se os nomes dos dias do fim de semana…

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desabafo

é engraçado o tempo que a gente gasta, é tanta falta de tempo que às vezes sobra o que fazer mas quase nunca dá pra encaixar tanto querer em tique-taques. E a gente aí, acumulando vontades, atropelando os dias com horas endividadas, pulando semanas que passam (oi?) tão desavisadas, contando a vida no quinto dia útil de cada mês. Seria lindo uma vida inteira de um dia inteiro de uma só vez pra desperdiçar assim, 

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oh, ciano

Eu nunca gostei de nadar no raso. A vontade de mergulhar no fundo e tocar os azulejos da piscina (ou pegar um punhado de areia do mar, subir bem rápido e tentar conquistar uma concha) traduzia-se em felicidade estampada no rosto  —  só ele aparecia quando eu boiava  —  e era bem maior que o medo de me afogar. Eu brincava de ir até a outra borda, como se me arrastasse no fundo, espalhando a água, tirando-a do meu caminho [literalmente, abrindo caminho], com todo o controle da apneia. Sim, o tempo da viagem era medido pela respiração, e, por isso, às vezes a ida era bem rápida. E, sim, eu diria que a pressa em chegar seria equivalente à demora que eu gastaria para retornar.

Na volta, os olhos fechados nas primeiras braçadas. Depois que eu conseguia estabilizar o ritmo, levantava os cílios, bem aos pouquinhos  —  a sensação era de como se estivesse acordando naquele instante. Era lindo nadar ao entardecer, quando o sol já não estava tão forte, e eu me sentia sendo levada pela água, como se eu fosse o barco e meus braços fossem os remos, então eu só via o céu, bem ali na ponta do nariz, tão pleno, e os desenhos de animação protagonizados pelas nuvens, tão versáteis, que viravam países, continentes inteiros até (!), e incontáveis e indefiníveis formas, que eu me perdia nas braçadas e, por um instante, nem queria mais chegar ao outro lado.

Meu sonho de criança era ser nadadora. Meu sonho de nadadora era ser nuvem. Meu sonho de nuvem era viver naquele espetáculo do céu e ser tudo o que se vê além da imaginação de uma criança.

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